Zagatti, o semeador de sonhos; conheça a história do sucateiro que virou dono de cinema em Taboão
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Por Antônio Carlos (ACAS)
Publicado no site vermelho.org em 2009 e no Portal O Taboanense em 2011. Texto republicada no dia 06/11/2024 como parte do resgate do acervo histórico deste jornal
Os “catadores” são responsáveis por parte do esforço que o ser humano consciente faz para melhorar o nosso habitat no planeta Terra; eles nos ajudam a economizar papéis, ou seja, árvores e oxigênio; ajudam a economizar alumínio, ou seja, deixamos de devastar a natureza e queimar combustível natural para processá-lo; ajudam a economizar derivados de petróleo, como produtos PET, etileno, polipropileno, poliestireno (PE), PVC, ABS e etc. (as siglas são muitas e proferi-las em nada contribuem para o assunto em pauta).
Há uma década, havia pessoas que disputavam com os urubus, entre o mau-cheiro de dejetos em decomposição, o botim da luta árdua. Dali eles tiravam comida, móveis, e materiais valiosos; sob seus modos de ver a vida, para sustento da família. Normalmente moram em casas improvisadas de papelão e madeira, catadas alhures, de cujos materiais faziam suas “casas”. Hoje, espocam em todos os rincões as cooperativas, que de certa forma contribuem para com a cidadania dessas pessoas, pois ao perceberem renda, elas se tornam compradoras e, portanto, fazem parte da sociedade.
Em muitas prefeituras, pelo Brasil afora, temos notícias de grupos de pessoas pobres que formam cooperativas e fabricam seu próprio pão, fazem compra em grandes mercados que vendem abaixo dos preços do mercado e rateiam os víveres e a conta. No entanto, não se iludam com os políticos: muitos deles, e o Sr. Luis Inácio, nosso presidente, não foge à regra, aproximam-se dessas pessoas com objetivos eleitoreiros. Este comportamento político talvez seja a “Pedra no Caminho” dessa legião de pessoas que trabalham como catadores. A Pedra no Caminho é uma alusão que faço ao lindo poema do poeta mineiro Carlos Drumond de Andrade que, se nesse tema aqui alavancado não cabia, coube e ponto final.
O semeador de sonhos
Existe um homem catador de papéis, que construiu com um lençol de sua própria casa, cadeiras velhas, pedaços de filmes de cinema e um velho projetor, tudo encontrado nos lixos das ruas de Taboão da Serra, cidade próxima da capital de São Paulo e com isso tudo, fez um cinema, o Mini-Cine Tupy, que funciona aos domingos no quintal de sua casa, onde todas as crianças (inclusive muitos adultos) assistem cinema pela primeira vez em sua vida.
São sessões gratuitas, onde não falta carinho, pipocas e até a distribuição de pequenos brindes, distribuídos por sorteio no final das sessões dominicais. Os brindes não são nada sofisticados, são pequenos brinquedos de origem chinesa, comprados em lojas de miudezas (R$ 1,99 cada).
Este homem é um conhecido meu, de Taboão da Serra, Grande São Paulo; o José Luis Zagatti, que era catador de materiais recicláveis. Nas suas palavras, ele era um reciclador, nome que acho mais nobre; que certo dia achou uma máquina de projeção de cinema no lixo de uma empresa. Apaixonado que era por cinema e sem condições de ir a cinemas (em São Paulo um ingresso de cinema chega a US$15.00); o Zagatti levou um tempo “consertando” o projetor até fazê-lo funcionar. Em outras oportunidades encontrou pedaços de filmes de cinema, os quais limpou cuidadosamente, recortou e colou-os uns aos outros.
Com esse filme, testou seu projetor; com o filme e o projetor, montou seu próprio cinema! Um amigo dele, também reciclador, achou vários trechos de filme de cinema, com qual foi presenteado. Sabendo onde o filme foi encontrado, foi até lá e procurou muito e encontrou quase um milheiro de pedaços de filmes. Num domingo, ele foi limpando os pedaços de filme que tinha em mão, cortava os trechos rasgados ou com imagens apagadas com seu canivete, e colava as partes com fita adesiva. Montou assim o filme com o qual fez a primeira projeção em família.
O “filme”, que poderia ser chamado de “Frankstein”, formado por pedaços de vários filmes, era apenas uma grande mistura de imagens, cenas de perseguição policial, cenas bucólicas, imagens de documentários mostrando cidades da América do Norte e da Europa, documentários indígenas, ”westerns” (faroeste) e etc. Não havia som, nem havia uma ordem, mas havia sonho.
Eis o José Luis Zagatti em ação, em tarde dominical no Mini Cine Tupy
Segundo pesquisa in loco, feita pelo jornalista Júlio César Caldeira, o Zagatti (é assim como é conhecido em Taboão da Serra), quando tinha cinco anos de idade, ele que é paulista da cidade de Guariba, região de Ribeirão Preto (Brasil), entrou pela primeira vez numa sala de cinema, pelas mãos de uma irmã. Desde então, aquele retrato de imagens projetadas numa grande tela nunca mais saiu da sua cabeça. Quarenta e sete anos depois, Zagatti representa para os moradores da sua comunidade, em Taboão da Serra, Grande São Paulo, a única idéia que eles têm do cinema. Há oito anos projeta na frente de sua casa, naquilo que ele pretendia chamar de garagem, em sessões gratuitas com direito até a pipoca; filmes antigos em 16 mm numa máquina que ele mesmo comprou por oitenta reais. Hoje ele é o “dono” do Mini Cine Tupy.
Além do lirismo dessa história, há um fato importantíssimo por trás da atitude do projetista, uma realidade que ele conhece muito bem: “Não há como as pessoas daqui irem ao cinema”, testemunha Zagatti, que ficou mais de vinte anos sem pisar numa sala de projeção. “É com isso que eu me preocupo bastante. A periferia é esquecida. Em todos os departamentos é assim, principalmente no da cultura.” Zagatti nunca havia procurado ajuda do Estado para seguir com seu pequeno cinema ou mesmo ampliar suas instalações. A única ajuda que recebia, há oito anos, era da Associação Paulista dos Colecionadores, que lhe fornecia filmes novos, sempre que podiam. “Conversamos bastante. Não sou como eles; sou humilde, mas sou considerado um colecionador também”, conta com justificável orgulho.
No entanto, sua humildade não o impede de enxergar a realidade na qual vivem os moradores da periferia. E a vontade de propiciar uma luz no fim do túnel, aliada à sua paixão pelo cinema, o motivou a começar e o impulsiona a continuar. “Uma ou meia hora que as crianças ficam reunidas em torno de uma tela e de um projetor já é uma forma de evitar que tenham contato com a marginalidade, o que futuramente evitará problemas para elas e para a sociedade de modo geral”, ensina o catador de papelão, que ainda cita uma frase, segundo ele, lida num livro do educador Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho”.
Origem do nome do “cinema do Zagatti”
Quando chegou em Taboão da Serra, o Zagatti conheceu o único cinema que Taboão da Serra teve por muitos anos: o Cine Tupy; cinema este criado e mantido por uma família tradicional de Taboão da Serra. Para se ter uma idéia, mudei-me para Taboão da Serra na década de 1980 e tal cinema já não mais existia há uns quinze anos. Eu sei até onde funcionava o cine Tupy, porém jamais vi ao menos uma foto dele; sobraram imagens apenas na cabeça do Zagatti. Sempre achei esta homenagem do Zagatti uma das maiores demonstrações de sua alma pura. Portanto, o Mini Cine Tupy é uma homenagem do Zagatti ao antigo cinema de Taboão da Serra.
Mais dados sobre o cinófilo Zagatti
José Luís Zagatti é apenas um dos vários casos que existem em todo o país, de pessoas que, cansadas de esperar alguma atitude dos órgãos públicos, resolveram arregaçar as mangas e criar um movimento de reação da sociedade. “É uma tendência que vem se espalhando no Brasil desta década”, analisa a ensaísta e professora Walnice Nogueira Galvão in …”Uma iniciativa pessoal que tem por ambição sanar lacunas e falhas do tecido social.” Bons exemplos, como o do Zagatti, meu amigo, devem ser seguidos. Creio que deva haver centenas de Zagattis, espalhados em todo o mundo.
Como o Zagatti foi “descoberto” e ficou conhecido
O professor de música e canto orfeônico, Nelson, funcionário da Prefeitura Municipal de Taboão da Serra da Secretaria da Educação e Cultura, foi um dos “descobridores” do cinéfilo Zagatti. A sua existência e sua obra solitária na Vila das Madres, de Taboão da Serra, emocionaram o professor de música. Sua história foi repassada ao Secretário de Educação e Cultura; deste ao Prefeito Municipal.
Nos últimos oito anos; Zagatti não deixou de ser uma pessoa de vida e hábitos modestos, mas deixou de catar material reciclável nas ruas e becos de Taboão da Serra. A notícia de sua existência e sua obra, repassada pelo serviço de assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo, tornou-se matéria com fotos do jornal “O Estado de São Paulo”. Depois disso, foi convidado a dar entrevista no programa “Mulheres”, da TV Gazeta, de São Paulo. Sua humildade, seus sonhos, sua preocupação com seus filhos e os filhos dos moradores da periferia, sensibilizaram muitos corações. Ele ainda tem aquela “cara que irradia bondade”; a meu ver o seu maior trunfo.
A efervescência cultural no início dos anos 2000 em Taboão da Serra, propiciou ao Zagatti ter contato com o pessoal de teatro (à época Taboão da Serra tinha ao menos cinco grupos de teatro; um deles era mantido, ainda que minimamente, pela prefeitura. Pois foi este grupo que deu ao Zagatti a primeira oportunidade de trabalhar em uma peça de teatro experimental, onde o Zagatti, portando um projetor portátil, projetava imagens por sobre os personagens da peça. Eu, ACAS, estive lá e constatei a felicidade que ele tinha em participar. (Em toda sua vida só havia visto teatro de circo mambembe, lá na nossa terra, no interior de São Paulo).
A matéria publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, repercutiu na França e a partir dela vieram jornalistas e gente da televisão para conhecê-lo e ao seu Mini Cine Tupy. Depois que foi mostrado na França, Zagatti foi convidado a participar de programas na REDE TV (programa de auditório), quando ganhou da apresentadora um telefone celular (ou telemóvel, como os lusos dizem).
O sucesso e o impacto que sua figura fizeram neste programa foi tão grande, que passados oito anos, eu creio que a audiência do tal programa jamais chegou ao número de telespectadores daquele dia. Os jornais franceses compararam sua história e seu Mini Cine Tupy, com o filme premiado mundialmente, o “Cinema Paradiso”. Zagatti participou também do programa de entrevistas mais famoso do Brasil, o “Programa do Jô”, apresentado pelo multiartista Jô Soares (ator, dramaturgo, escritor, diretor de cinema e teatro, cômico e entrevistador por excelência), na poderosa e conhecida Rede Globo de Televisão. Após sua participação, Zagatti recebeu uma dezena de filmes novos, um novo projetor, caixas de som, uma máquina de fazer pipoca e um saco de milho, para fazer as guloseimas.
Popularidade e Reconhecimento
Zagatti conseguiu popularidade por méritos e reconhecimento. Sobre ele foi feito um filme “documentário” de curta – metragem, filme este premiado no Festival de Cinema de Curitiba, em 2003, onde o Zagatti foi receber o prêmio e arrebatar a platéia de atores e gente de cinema e empresários.
O Filme “Zagatti” ganhou o prêmio de “melhor filme” no 7º Festival dos Festivais de Cinema de Curitiba. “Zagatti”, foi dirigido e produzido por Edu Felistoque e Nereu Cerdeira (SP). O 7º Festival de Curitiba aconteceu entre os dias 19 e 24 de Maio de 2003. O filme mostra um dia na vida do Zagatti, como “catador”. Porém, ao vê-lo puxando seu “carrinho”, separando papelão, metais e não metais, ouvimos uma declaração sua, demonstrando a importância ecológica de seu trabalho. Ele diz que cada papelão que coleta e que vai ser reciclado, é uma árvore a menos a ser abatida na natureza; a mesma coisa a respeito de materiais recicláveis como alumínio, cobre, ferro e etc. como ficou aqui bem claro, até um cinema praticamente “emergiu” do lixo.
Nos jornais locais, em Taboão da Serra, inclusive n´O Taboanense, onde colaborei, como diletante, por um ano; dá-se como certo a execução de um filme de longa metragem sobre o mesmo tema do “Curta metragem”, que foi premiado. Segundo divulgado, até o intérprete para o lugar de Zagatti já foi escolhido; trata-se nada mais nada menos que o ator Lima Duarte, sobejamente conhecido pelas novelas nas quais participa pela Rede globo de Televisão, e do teatro de do cinema, naturalmente.
A jornalista Adriana Bosco escreveu em fevereiro de 2001: …” dizia o Zagatti: a primeira vez que eu entrei em um cinema eu estava no colo da minha irmã. Vi aquela tela branca grande e aquela luz que saia e refletia nela e me encantei “.
Concordo com a jornalista Adriana Bosco, quando afirma que há que se construir um Mini Cine Tupy em cada cidade pobre do mundo, em todos os continentes. Se os governantes não resolvem os problemas sociais, a esperança de um Mini Cine Tupy em cada um destes lugares miseráveis do mundo, traria senão a redenção, pelo menos a perspectiva de um mundo melhor, com mais esperança. Talvez a nossa presença neste mundo faça sentido, se nos irmanarmos nisso, ou se plantarmos esta semente.
Segundo o jornalista Júlio César Caldeira, José Luis Zagatti é apenas um dos vários casos que existem no Brasil, de pessoas cidadã por excelência que, cansadas de esperar por alguma atitude dos órgão públicos, resolvem arregaçar as mangas e criar um movimento, ou principiar uma ação de reação da sociedade. O Zagatti achou seu próprio modo de criar espaço de lazer para as crianças pobres, como até plantar sementes de cidadania, brasilidade e de cultura.
Lembro a “parábola do semeador”, do texto bíblico:
…” Saiu o semeador a semear a sua semente. E ao semear, parte da semente caiu à beira
do caminho; foi pisada, e as aves do céu a comeram.
Outra caiu no pedregulho; e, tendo nascido, secou, por falta de umidade.
Outra caiu entre os espinhos; cresceram com ela os espinhos, e sufocaram-na.
Outra, porém, caiu em terra boa; tendo crescido, produziu fruto cem por um”.
Antônio Carlos, o ACAS, É natural de Cravinhos-SP. É físico e poeta. Tem textos publicados em 6 livros, entre eles, o “Pequeno Dicionário de Caipirês” sendo o último, infantil, “A sementinha”. Durante a década de 2000 publicou uma coluna no Portal O Taboanense